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Crimes de intolerância na Constituição Federal de 1988

Parece estranho falarmos de intolerância e discriminação baseados em preconceitos fundados em parâmetros como raça, etnia, religião, cor, orientação sexual, entre outros, em um país constituído de tamanha e notória pluralidade cultural advinda da miscigenação de povos que, em diversos momentos, formaram nosso povo, o brasileiro.


Internacionalmente reconhecido por seu povo acolhedor e sua quase que infindável riqueza cultural, o Brasil está muito longe de ser, de fato, um país sem preconceito, que garanta o tratamento igualitário entre seus populares.


Cotidianamente flagramos situações – de conversas informais a reuniões de trabalho – em que o preconceito e a discriminação podem ser evidenciados de diversas maneiras e intensidades. Isso faz com que a tutela do direito seja imprescindível para formação de uma nação mais justa, visando sempre o tratamento digno de todas as pessoas.


Na incessante busca que tais intolerâncias sejam erradicadas ou amenizadas, a legislação pátria vem sendo duramente enrijecida, em diversas esferas do direito, com a nítida finalidade de coibir e punir aqueles que praticam discriminações. Note-se que a proteção legal visa atingir a todos aqueles que, de alguma forma, tem sua dignidade humana desrespeitada, não se limitando somente ao preconceito racial.



Ainda que seja uma das manifestações discriminatórias mais patentes, o racismo não é a única forma de discriminação. No cotidiano verifica-se a prática de exclusão social e discriminação contra diversos grupos, equivocadamente chamados de “minorias” – popularmente conhecidas como “minorias” com o fito de estigmatizar humanos fora do que seria considerado “normal”, quanto às características e contexto de cada indivíduo.


A proteção legal a qual se fez referência tem por fundamento a própria Constituição Federal, que declara a igualdade dos homens perante a lei, vedando a discriminação arbitrária. O texto é intrinsecamente ligado aos textos internacionais de Direitos Humanos, que buscam homogeneizar tal condição de igualdade, através de Tratados Internacionais e Convenções.


No âmbito do Direito Penal, que constitui, verdadeiramente, a externalização de direitos materiais tutelados em âmbito constitucional, temos institutos para coibir praticas discriminatórias. Traz em sua parte especial a previsão do crime de injúria (artigo 140), sendo que, com maior rigor, dispõe em seu parágrafo terceiro acerca da injúria consistente em elementos de raça, cor, etnia, religião, bem como outras demais características formadoras do indivíduo.


Seguindo a mesma linha de raciocínio, o legislador elaborou a Lei nº. 7.716, publicada em 5 de janeiro de 1989, prevendo em seu texto crimes de discriminação e preconceito, sendo estes últimos punidos com rigor, possuindo, ainda, peculiaridades que serão abordadas no momento oportuno.


Por ser tratar da área do direito que tem o condão de restringir o bem maior do indivíduo, qual seja sua liberdade, é fundamental que se analise a “ultima ratio” da maneira adequada, buscando seu embasamento em seu diploma maior e nas leis esparsas.


Cumpre esclarecer ainda que, apesar de a lei mencionada já estar em vigor há ao menos vinte e cinco anos, pouquíssimo se escreveu acerca dela. Ainda de forma tímida, alguns autores se aventuraram a analisar o tema, tendo este artigo se baseado em alguns destes. Tudo na tentativa de trazer o tema ao debate, dada sua relevância social e moral.


Assim como prescreve o artigo 1º, “caput”, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial – ratificada pelo Brasil apenas em 27 de março de 1968, discriminar significa promover qualquer tipo de distinção, exclusão, restrição ou preferência. Cabe salientar que, a discriminação não necessariamente possui um viés negativo, sendo que o ordenamento jurídico brasileiro aceita as chamadas discriminações positivas, como forma de política de compensação social em benefício de determinada classe de pessoas (como por exemplo as cotas raciais em universidades).


Neste mesmo tratado, preceituou-se no artigo 1º, item 4:


“Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, conquanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados seus objetivos.”


Ocorre que, a partir do instante em que a discriminação ocorre de forma desproporcional, ausente qualquer motivação idônea, e que se direciona à outra pessoa com o intuito de privá-la de determinado direito ou bem, há clara ofensa ao princípio constitucional da Igualdade.


Neste mesmo sentido, é clara a proteção legal contra a prática discriminatória, na medida em que a Lei 7.716/89, em seu artigo 20, traz como fato típico o induzimento e a incitação à discriminação racial. Trata-se de clara hipótese de crime de perigo abstrato, vez que o dano ao indivíduo não necessariamente necessita ocorrer, tendo como vítima a própria coletividade, que deve combater a disseminação desta prática abominável.


Já quanto ao preconceito, este conceitua-se como uma disposição interior do indivíduo que, calcada por conceitos pré-estabelecidos, impede uma reflexão concreta acerca da relação a ser mantida com um indivíduo com características diferentes, em razão desta opinião formada antecipadamente. Trata-se, portanto, parte constituinte do elemento subjetivo do tipo penal descrito na norma.


Da mesma forma, há que se salientar que o preconceito age como um tipo de “gatilho” para manifestações discriminatórias, evoluindo de um estado anímico para constituir o injusto penal propriamente dito (racismo em ato), atua, portanto, como ânimo que motiva a ação discriminatória, que pode configurar conduta típica e ilícita, passível de punição na forma da lei.


Atuando no plano psicológico do sujeito de forma que este passa a acreditar haver uma superioridade real de determinado agrupamento humano sobre os demais, servindo como motivador e justificativa para que este passe a agir, imaginando ser superior à outra pessoa, proporcionando-lhe prejuízos e sofrimento injusto.


Por fim, é fundamental ressaltar que o preconceito exterioriza-se de diversas formas, através da fala, por meio de gestos, ou, ainda, pela forma escrita.


A Constituição Federal, em seu artigo 3º, inciso IV traz como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.



No art. 4º em seu inciso VIII, elenca como princípio das relações internacionais do Brasil, o repúdio ao racismo. Assim, os crimes decorrentes do preconceito decorrem de verdadeiro mandado de criminalização explícito de nossa Constituição Federal, que além de prescrever, indica a pena que deve ser aplicada a esses crimes.


Já o art. 5º, inciso XLII da Constituição Federal prevê que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei 7.716. Ademais, no inciso XLI do mesmo artigo 5º afirma o constituinte que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. Afirmativa que reforça a obrigação do legislador ordinário, não permitindo qualquer tipo de descriminação ou conduta similar por sua parte.


De acordo com este mandado de criminalização deveriam existir tipos penais e sanções para todo e qualquer tratamento discriminatório que impeça o exercício regular dos direitos fundamentais. Sendo que, como anteriormente exposto a mais séria destas discriminações, o racismo, foi destacado pela constituição.


O professor Luiz Carlos dos Santos Gonçalves traz em sua tese de doutorado algumas condutas que em seu entender deveriam estar abrigadas neste mandado além do racismo: “i.) as discriminações de gênero; ii.) de orientação sexual; iii.) de idade; iv.) de procedência nacional ou regional; v.) de condição social; vi.) de grau de instrução e cultura; vii.) de religião; viii.) relativa às pessoas com deficiência, etc.” [5]

Há, portanto, um mandado de criminalização tratando deste assunto, sendo o legislador ordinário obrigado a atuar neste caso e mais, atuar nos limites estabelecidos na Constituição Federal.


CONCLUSÃO


Levando em consideração que o texto constitucional determina que devem ser evitadas e repreendidas todas as formas de preconceito e discriminação, as normas que cuidam do assunto restringem-se sua tutela aos crimes decorrentes de preconceito e discriminação em função de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Resta evidente que outras formas de discriminação e preconceito como as de gênero, de orientação sexual, de procedência regional, estão desamparadas em nossa legislação, abrigando-se apenas tutela judicial do caso concreto.


A luta pela igualdade plena deve ser constante, não devendo limitar-se ao plano repressivo. A lei penal é inquestionavelmente fundamental, sendo o instrumento através do qual aqueles que afrontarem os direitos indivíduos de outrem devam ser punidos de forma exemplar. No entanto, a verdadeira vitória será garantida no âmbito social, por meio da educação a redução das desigualdades e, consequentemente, do preconceito e da discriminação são realmente possíveis.


A discriminação positiva, como forma de equivalência de oportunidades das condições sociais (em toda a sua infinidade), e, principalmente, no livre exercício dos direitos individuais, é um caminho possível porém insuficiente. Percebe-se que a solução seria a mudança definitiva de um paradigma histórico-social ultrapassado, ainda muito presente na sociedade.


O Brasil é um país onde vigora mentalidade elitista, com raízes históricas e fortes traços discriminatórios, se tornando um ambiente desfavorável a todos considerados diferentes.


Apesar da rica miscigenação cultural que pode ser verificada em todo território nacional, a diversidade não é facilmente aceita, sendo tratada com inferioridade e desrespeito aos direitos humanos.


A busca por uma nação íntegra, onde seus habitantes convivam de forma harmônica, não somente beneficia aqueles que sofrem a discriminação, mas também acrescenta valor humano a todo o povo brasileiro, sem cara, cor, raça, religião, idade, gênero, orientação sexual, limitações ou deficiências físicas.


FONTES


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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7. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª edição. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2006.

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11. ARAÚJO, José Carlos Evangelista de. O Estado Democrático social de direito em face do princípio da igualdade e as ações afirmativas. Dissertação (Mestrado), PUC-SP, São Paulo, 2007.

12. ARAÚJO, Luiz Alberto David; Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de direito constitucional. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

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SITES


http://vistaminhapele.blogspot.com.br/2013/07/evolução-historica-do-racismo-e-da.html

http://www.leiaja.com/carreiras/2013/preconceito-contra-negros-no-trabalho-ainda-e-realidade/

http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=20607

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm

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Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=94836. Acessado em 20.03.2017.



Gino Paulucci Netto

Sócio Fundador

gino@wpmg.adv.br

WPMG Advogados



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